quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

QUERIDA - José Bernardo Neto


Diz-me, querida, do que
na vida deixei de ser.

Deixemos de lado, por pudores antigos,
as cenas picantes, os gemidos fingidos.

Aparta, também,
dos sonhos a morte
e das crianças o choro.
Fala-me de interioridades,
profundas e alheias ao amor carnal,
das coisas sem conhecidas idades
guardadas no pálido banal.

Fala-me dos deslizes meus
do olhar, do calar, do fugir.
Dou neste momento a ti
a voz da finalização
dos nossos dias
e dos nossos desamparos.
Conta tudo, defaz-te
de minha presença visual
e fala de meu outro eu,
daquele que não te amou
o quanto prometeu.

E num franzido te direi,
neste silêncio amador,
que nesta não imaginei
entregar-te tão pouco amor.

Poderias ter um, ou outro.
Tiveste, com prazer e dor, os dois.
E se quiseres tudo esquecer,
convida-me ao esquecimento.
Leva-me contigo ao menos
no teu entorpecimento.

Pois breve estaremos
juntos no sedento pó,
esquecidos e esquecedores
das vidas e das mortes
que ganhamos e perdemos.
E doídos estaremos do tanto sentido
e cambaleantes no quanto sofrido,
como pássaros cansados,
de asas combalidas
e bicos entristecidos,
sem pouso certo,
sem ninho aberto
e sem nada além
de inapagáveis lembranças
de calor e de distâncias.

Diz-me aqui, querida,
da morte da vida
e, havendo sorte,
da vida da morte.

O mais que se guarda
dentro da jornada
são temas ruídos
e bem esquecidos.

Diz-me, querida,
conta-me tudo
enquanto há vida
e estou tão mudo.

Diz-me tudo, minha querida,
pois é breve minha partida.
José Bernardo Neto
(Sonhador)

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